em sua renovação, a humanidade jamais vai querer se parecer consigo mesma, especialmente naqueles elementos
da vida real que mais confundem nossas noções sobre o que é saudável e proporciona esperança, alegria de viver ::
essas revoluções comportamentais que rebentam especialmente entre a juventude simula de certo modo a irritação
que todos sentimos com o limite de nossas casas, ou da sociedade em geral, contra o azedume ou amargor, contra o gosto
adverso que vai assumindo a vida :: explodem, são visões do novo, apenas insinuantes, sem requerer uma mudança
imediata no estado das coisas, uma quebra na espinha dorsal do sistema :: essa infra-estrutura do rock é básica
e diz respeito a uma violÊncia sempre no sentido da mudança :: acho que o rock puxa uma carroça importante
na vida da sociedade atual, mundializada :: ritualiza o incesto invertido, quando o mundo se abre para a rua, para
fora de casa, espiritualizando as "porradas" que o filho gostaria de ter dado em seu pai, resolvendo sua masculinidade
suja, de um poder masculino que abre-se para a des-opressão, infiltrando-se no sistema e permitindo, até que enfim,
uma liberação dos modos, na vida, de um modo geral, especialmente no mundo do trabalho, ou no mundo da guerra :: tudo fica menos chato, menos formal,
menos "careta" :: afinal de contas, é sabido do fundo da alma humana que a vida pode ser mais simples e menos
hipócrita, e que a beleza é um direito a ser exercido por todos ((daí a noção de "fauna" entre os roqueiros
e de sua
individualidade mantida com segurança, seja na roupa, seja no modo de tocar :: aflora entre as bandas e os fãs
uma bizarrice, ou uma esquisitice, muito parecida com a dos modos aborígenes de encarnação de seus mitos guerreiros
ou de salvação, cheios de brincos, tranças, correntes, detalhes, tatuagens e batidas tribais :: eu seria idiota se não
conseguisse relacionar ambas as situações :: na alma aborígene está a própria raiz desse tipo de música, que aos poucos
veio dando o colorido e a tonalidade da vida em sociedade no Ocidente, desde as últimas décadas do século XX ::
as vilas operárias vão se transformando, e nossos filhos perdem o aspecto do proletariado :: os antigos escravos,
retirados da informação maternal da floresta, onde tudo era festivo e caloroso, para terem o sangue sugado nas plantações
do comércio internacional, surgem projetando as sombras de seu misticismo sobre o que no fundo sempre quis
se tornar a sociedade branca europeia, em um retorno ao período do mito guerreiro pagão da grécia e seu universo fabuloso
de amores, aventuras e encantamento :: somos agora muitos corações palpitantes, sobre o fundo de uma mesma
energia vital, esperando cada vez mais a vida parecer-se cada vez menos com um inferno de exploração física e
sexual, esperando a exploração, isso sim, das infinitas possibilidades de ser humano, como nos demonstram ser possível
os oásis criativos que uma vez já explodiram, como esses que existem na califórnia, estados unidos :: sempre fico espantado ao pensar que meu pai sequer sonhou que era isso que se sucedia
quando começou a ver seus filhos, netos de imigrantes agricultores italianos, do interior do rio grande do sul, consumirem discos e roupas do AC/DC
e iron maiDen, em meados da década de 80, sem vínculo algum com seu jeito gaúcho de ser, falar, vestir-se e inclusive
seu jeito gaúcho comportar-se como macho, na relação com o feminino :: hoje, no entanto, me surpreendo creio que ainda mais ao perceber o quanto minha gauchidade
oculta por camadas de cultura rock internacional tem lugar essencial na constituição da minha figura como pai,
agora já quase meio-avó, e desses novos meninos que se encontram perdidos por aí, caçando novas figuras que lhes ajudem
a compor o mito revelador e existencial de suas vidas :: se existe uma figura do imaginário gaúcho que me encanta,
por razão fascinante e misteriosa, é a do "galo" gildo de freitas, sua intrépida alegoria a toda alma farrapa, longe
o suficiente do tempo conformista de alguns cultos que se fazem ao ser e estar no rio grande :: haveria ali uma
veia roqueira, garanto, capaz de expulsar todas as bruxas más que nos encantam e nos empurram, enquanto jovens,
adolescentes, homens (eternos meninos-homens), que precisam avaliar e considerar todos os problemas que necessitam
ser resolvidos dentro de uma casa, criar os filhos, com honradez, honestidade e simpatia, ao lado de uma prenda amada ::
porque se há uma linguagem que nos cura, e nos resolve, é a dos mitos de nosso terra :: aqui, evidentemente, há um incrível
mistério, como nas aventuras de harry potter, aquilo que de modo mais preciso eu já disse que me fascina :: somos
essa ruralidade contemporânea, sem compreender que não seremos "grossos" por sermos gaúchos :: a face missioneira
de gildo de freitas, seu porte altivo, sua inesquecível hombridade, revela apenas uma etnia massacrada (no limite,
toda a nação amérindia massacrada pelas colonizações portuguesa e espanhola) justamente massacrada por não ter
desistido de lutar, até o fim :: somos perdedores, no contexto histórico atual, se perdemos de vista esse fato - os ritos
da cultura jovem contemporÂnea tornam-se perfeitos, no caso do brasil e da américa latina, quando não perdem
de vista a eternidade de uma guerra bastante sangrenta ::
menos ritos, mais o linguajar se empobrece :: falemos a linguagem da antropofagia cultural :: nossa verdade se consome
em ritos de desolação canibalística :: o bRasil aos poucos começa a liberaR seus fantasmas mortos em combate ::
nosso heroísmo resplandesce :: na tumba de zumbi dos palmares, ao norte; na lição da fascinante trajetória missioneira ::
cada revelação que brota, como no complexo mangue/favela, geograficamente envolvendo do nordeste ao rio de janeiro,
amplia o sossego de uma ferida que cura, encravada na exposição de nossa difícil composição miscigenada :: ô pátria
lavada em sangue negro e indígena, como diria Darcy Ribeiro :: o que é incrível é nossa recomposição dionisíaca,
a partir dessa imensidão dos olhos de um cristo apaixonado por maria e suas bentas águas vivas :: que composição
fantástica, a do mito brasileiro, em carne viva, na fonte viva de sua cura, que é o sacrifício, ele próprio, da miscigenação ::
a cultura vem como água que cura, água mítica, apascentando, livrando-nos dos males :: que gildo de freitas esteja
soterrado, é desejável, e quanto mais sentirmos sua presença, melhor será resgatá-lo :: sua sobrevivÊncia como mito
depende de seu esquecimento :: na região livre da música urbana, poderá ser reerguido com irreverÊncia, para nos
apropriarmos então de seus ricos significados :: gildo é um fruto polpudo, mas difícil de ser descascado :: na formação histórica
do rio grande do sul, a relação do macho soldado com sua prenda o leva a finos trinados que guardam segredos
sensuais específicos de uma relação com a terra pelo inverno, o pampa, o continente gelado :: esse amor impossível
à terra, fruto da impossibilidade do amor real em terra, no processo sócio-histórico, guia é a revelação aguardada
como água da fonte :: foi com ela que se construíram as imagens do gaudério atual, fruto do movimento tradicionalista,
alimentado pela mídia comum, do fim do século passado, mas que não se esgota nessa composição única :: há uma
fonte única, há um regato, cuja maior significado é a purificação masculina sua desintoxiação dos estertores da cidade ::
a mitologia gaudéria aguarda ser resgatada, como uma espécie de prenda macha, mortífera e sinuosa :: ela olha para
quem a olha nos olhos, rombuda de filhos novos, em seu nascituro